sábado, 31 de julho de 2010

Uma mooca espanhola e 2 receitas

Já ouviu falar na famosa festa de San Gennaro? Pois é, para quem reside aqui, é impossível fugir do senso comum como ocorre no interior. Ontem mesmo, tricotando com minha tia Maria e sua vizinha Neide, nos pegamos falando do que agrada boa parte da terceira idade: comidinhas. Você deve estar achando que este será mais um episódio para falar de remédios e paróquias, mas não! Você não tem idéia do que está por vir.

Conversando com as velhas, logo percebemos uma riqueza que vai se perdendo ao tempo. Eis uma razão para este post. Em momentos mais calorosos, delas chegamos a ouvir, ‘A receita certa é como fazia minha mãe!' 'Pão de ló não leva fermento', 'Pão tem que rasgar que nem o Abraão', 'Bolo tem que bater 20 minutos'. 'Chef?', elas se rigozijam...'Sabe o que é 60 anos de forno e  fogão?' Ainda estamos conversando e minha tia aproveita para temperar mais uma leva daqueles bifes molinhos, tudo regado a vinagre, orégano e alho, muito alho. Como essa gente gosta de pimenta!

Elas também são quem contribuíram para difundir várias lendas urbanas hoje falidas na era 'pós Mundo de Beackman', como a famosa ‘manga com leite é veneno’, ‘girar objetos dá azar’, ‘mexe-se em dois sentidos azeda' e o não menos temido ‘banho de barriga cheia pode matar’.

E não é para menos, se elas têm algo de sobra é história para contar. Lembram de quando o Tatuapé era bairro de rico e onde mal havia asfalto. Se não estavam nos bailinhos, eram suas vitrolas embaladas a Libertad Lamarque, Francisco Alves e tantos mestres chorosos. Quem diria que no Soulseek minha tia reencontraria o saudosismo em Miguel Caló, Francisco Canaro, Julio Soza, Carlos di Sarli e tantos outros? Ou que por eles e sua música eu também iria me encantar... Essa história vai longe! Senta aí, pega um café! Açúcar o adiçante?

Então, ontem mesmo, enquanto conversávamos, minh tia me pediu uma receita de buñuelos, espécie de rosquinha frita, nunca ouvi falar. E você? Ah, tah bom! A receita original é do 'Reconquinaria', passou pela Italia, país basco e aqui desembocou nas terras do além Portugal como o famoso beignet à base de maçã. Já Neide, sua vizinha, pediu-me que procurasse pela receita de 'borrachuelo'. 'É só usar Raid, brinquei'.

Brincadeira à parte, se quiser as receitas, elas estão lá embaixo. Ah eu te conheço, você não vai clicar no link e perder esta história. Vamos lá, o buñuelo, mais comum, tem em todo lugar; de Madri à Colômbia. O borrachuelo, mais restrito, vem de Málaga e de lá parece não ter saído. Tão ávido quanto elas, lhes imprimi fotos, história e receitas com letras garrafais tamanho 16, idioma español. ‘Espanhol, eu entendo espanhol!’... bradam no peito. 'Não será dificuldade alguma!' Foi o que eu também achei.

Que diria... Ajonjoli (gergelim) e machalahuga (aniz verde) são luxos nesta parte do mundo, de espanõles que se abrasileiraram na Mooca. Mas aí que vem melhor parte. Eu parto sempre do pressuposto que um idoso tem muito a nos ensinar. Desta vez, foi diferente. Quando disse à Neide que a receita era de Málaga, ela não hesitou: 'Malaga? Minha mãe era de Málaga! Eu vou fazer, deve ser muito boa'. Lição número 1, por mais exótica ou esquisita que seja uma receita ao seu modo de vida, se ela tiver origem em seu berço, caem-se todas as diferenças.

Maria Valle Arouca, definitivamente uma pessoa nada comum. Ela se parece em tudo, menos com uma dessas velhas ranhetas, chatinhas. Parte da resposta talvez esteja aqui mesmo na Mooca, bairro mágico e ao mesmo tempo afastado dos centros movimentados de SP. Aqui, onde costumava haver uma nona em cada esquina atirando farinha para o alto e abrindo a própria rotisserie, agora o que se vê são os grandes empreendimentos, o junk food e a miséria cercando o bairro cada vez mais. A partir dos anos 90, praticamente nenhuma casa mantém os antigos portões de pouco mais de 1 metro; tudo passa a ser fechado, com grades. Na San Gennaro, onde ainda ecoam as canções de outrora, a mudança se fez notar mais ainda.

Sensível aos novos tempos, minha tia sempre foi uma aventureira. A última é o desejo por um notebook ainda que a miopia não lhe permita. Aos setenta e poucos anos, sem nenhum sintoma de pânico ou ansiedade, ela ainda se atreve a desbravar a cidade. Sabe ir de ponta a ponta com o malfadado transporte público como ninguém. Sabe a razão para os nomes das ruas e os nomes antes dos que agora conhecemos. Metrô? Esse sim é um desconhecido...

Num passeio com ela, não estranhe se todos a reconhecerem e cumprimentarem na rua! Quer desconto na padaria, na vendinha, no açougue do Seu Manoel? Fala da Maria! 'Dona Maria, ai meu Deus! E como vai sua tia? Boa mulher aquela, boa sim!' Anjo no entanto, só mesmo Plácida, sua irmã, minha falecida e avó, acreditem, nome de rua no bairro. O que a espanholada não sabe é que minha tia é uma mulher de fibra. Sofreu muito dentro de casa com o marido que a maltratou e depois dependeu dela quando sucumbiu ao câncer. Sofreu com a filha rueira e desmiolada e hoje uma grande mulher trabalhadora. Peitou os Gigantes do Ringue que estacionavam o ônibus em frente à sua casa e o estacionamento vizinho que amaçava desabar. Figurinha carimbada na prefeitura, sua casa se tornou um respeitado centro espírita.

Conhece a Palmirinha da época em que ainda era quituteira, mal dava pinta na TV. Conhece o Seu Silvio Santos de quando era camelô, jura que ele vendia canetas na Sé. Não entende o pós modernismo de Ana Maria Braga ou Katia Fonseca; lembra de Ivone, Benjamin Abraão e Dona Ofélia. Minha tia é da época em que Planetária era algo que se leria num gibi de ficção. Rádio, bonde, costura, galinhas e morcilla...essa era a vida!

Naquela época, a gemada e a maionese eram batidas no garfo, porque a gente de cá nem sabia o que era fouet. A gente de cá, muito embora europeus por descendência, cultura e comportamento, parece-me que ficou ao relento, de um Brasil também na promessa por dias melhores. Da Paes de Barros para baixo a Mooca está ao alento. Algumas reformas foram feitas, mas a região ainda conta com imóveis abandonados, tomados pela população miserável. Os idosos, que nada tem a ver com isso, pagam os impostos muito bem obrigado, sabem da existência de uma sub prefeitura regional, mas desacreditam. Foram tantas promessas em vão... Minha tia quem o diga! Melhor do que ningém, ela sabe o que foi da Mooca, seu presente e as promessas que estão por vir com a explosão da construção civil. Se Deus quiser (e há de querer), ela ainda vai dar muito o que falar por aqui.


Quer a receita de bañuelos? Acá


Quer a de borrachuelos? Vale!

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